sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

CRÔNICA

VOCÊ ESQUECEU, PACHECO

                Um pouco por pressentimento, um pouco pela lembrança dos fins de semana arruinados pelo decrépto carro familiar, e definitivamente por não confiar na memória do marido, 15 dias antes do feriado da Páscoa dona Marocas já começou a advertir:
                – Pacheco, você precisa levar a Brasília para a revisão. Não vá esquecer, Pacheco. Pelo amor de deus Pacheco.
                Pacheco fazia que sim com a cabeça. Depois pressionado pela mulher, resmungava sim, sim. Finalmente encurralado no canto da sala gritava que sim, sim, sim. Iria ao mecânico. Ela podia ficar sossegada. À noite a mulher cobrava e Pacheco respondia:
                 – Não esqueci, Marocas. Não esqueci. Só não tive tempo, hoje. Mas amanhã...
                Assim se passaram duas semanas, até que, na véspera da grande descida para o litoral, Pacheco chegou do trabalho e foi logo avisando:
                 – Não precisa nem perguntar, mulher. Hoje eu fui. Fizeram uma revisão completa. O carro está um rojão.
                No dia seguinte, já umas 5 da manhã, a abnegada Brasília esta pronta pra mais uma missão histórica: descer a serra com Pacheco, Marocas e os três rechonchudos meninos, cada um – graças a Deus e aos sanduíches – na faixa dos 70, bem pesados. Ia também a tralha básica – os mantimentos, as roupas, os cobertores, os remédios, o mata-mosquitos, o mata-baratas. Além disso, é claro, havia a tranqueira maldita – nessa definição de Marocas compreendidos a bicicleta do Junior, o skate do Juca e o Patins da Jajá.
                Às cinco e um, estritamente dentro do programa, a sonolenta Brasília estremeceu toda ao ser ligada, tentou por duas vezes se fazer de desentendida e chegou a posar de morta antes de se resignar, ainda tremendo de frio, a pegar novamente o longo caminho da praia. O sol não tinha aparecido e a estrada estava deserta. Só Pacheco, Marocas, os três meninos e a corajosa Brasília , que espirrava, tossia, reclamava, mas seguia em frente. Ou pelo menos seguiu até que, depois de uma praga, um murro no painel e alguns palavrões, Pacheco a fez estacionar no acostamento. Antes de destravar a tampa d capô, abrir a porta e sair, ele ouviu:
                 – Ah não! Outra vez? Você não levou esse carro pra revisão, Pacheco. Você não levou.
                Já com o macaco e a chave de roda na mã, ele se defendeu indignado:
                 – Levei sim, mulher. Levei. O carro não tem nada. Foi só o pneu. Em vez de ficar falando bobagem, é melhor sair daí, senão não vou conseguir suspender isso nunca. Vocês também meninos. Vamos, vamos.
                Dez minutos e muita discussão depois, o pneu estava trocado e os Pachecos prontos para seguir viagem, quando do meio do mato apareceram três revolveres apontados para eles. A família não teve tempo de dizer um “a” e já a Brasília estava sumindo no escuro, com os três malandros, a tralha básica e a tranqueira maldita.
                Felizmente passou logo por ali um policial rodoviário. Muito gentil, acomodou as cinco vítimas no carro e tomou o rumo do posto. Lá eles poderiam tomar um café quente e esperar pela devolução das Brasília. Porque ele estava avisando pelo rádio as duas viaturas que já tinham entrado em serviço e ia ser questão de minutos. A não ser é claro, que os bandidos se enfiassem por uma das estradinhas ao lado da rodovia. Mal ele disse isso, Pacheco, agitado, berrou:
                – Olha lá, seu guarda. Olha lá a Brasília. É ela.
                Era mesmo a infeliz. Estava parada no acostamento, com as portas abertas. O policial jogou o farol alto sobre ela e esperou um minuto. Não havia ninguém ali. Desceram todos e foram fazer a vistoria. Era sorte demais: só faltavam os sanduíches de queijo que eles pretendiam comer no caminho.
                O guarda achou estranha aquela deserção:
                – Não entendo porque os bandidos não continuaram.
                Dona Marocas foi assaltada então pela antiga desconfiança:
                 – Pacheco, você mentiu descaradamente pra mim. Não levou o carro pra revisão, não foi?
                 – Levei sim, mulher. Levei, eu juro. O carro está ótimo. Só não lembrei de uma coisa.
                 – O que foi?
                – Esqueci de pôr gasolina.
                Graças a Deus, Pacheco, graças a Deus. 
(DREWNICK, Raul. O Estado de São Paulo – Caderno 2, 15/5/1990)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Um dedo de prosa sobre Drummond



                Peço licença para escrever sobre Drummond. Não só pelo fato dele ser um dos precursores do Modernismo no Brasil, mas também por ver em suas poesias e prosas o testemunho de um momento histórico marcante. Com suas poesias vanguardistas, ele quebrou barreiras e no verso livre, denunciou e refletiu sobre a sociedade brasileira do século XX, falou sobre sua infância e sua vida, e mesmo negando seu lugar na Academia Brasileira de Letras, ele se imortalizou como um dos maiores poetas da nossa literatura. Por isso, escrever sobre Carlos Drummond de Andrade me exige, além de curiosidade e dedicação, muito respeito. E escrevo este texto com orgulho de poder fazer esta homenagem ao poeta que teve um papel tão importante para literatura brasileira.
                Nascido em Itabira do Mato Dentro (MG) em 1902, Carlos Drummond de Andrade cresceu e viveu vendo as transformações que a sociedade e o mundo passavam. Em sua pacata cidade do interior de Minas Gerais, ele era filho de fazendeiros e viu sua família apoiar a candidatura à presidência de Rui Barbosa. Ainda menino, viu o mundo entrar em Guerra, porém sempre se dedicou aos estudos e aos poucos sua veia poética começava a se revelar – em 1918, no colégio Anchieta (Nova Friburgo) ele publicou no jornal estudantil Aurora Colegial o poema “Onda”, que revelava seu futuro poético. Um ano depois ele foi expulso do Anchieta por “insubordinação mental” (seja lá o que isso significasse naquela época!). Mudou-se para Belo Horizonte, formou-se em farmácia, mas não exerceu a profissão, para “preservar a saúde dos outros”, segundo ele. Era grande admirador de Manoel Bandeira, outro ícone da modernidade brasileira, e chegou a mandar uma carta revelando sua admiração, em 1924. Um ano depois lançou com amigos escritores “A Revista”, onde publicou “No meio do Caminho” que causou grande reboliço na época da primeira fase do modernismo no Brasil. Mais tarde essa poesia fez parte de seu livro “Alguma Poesia”, considerado um dos marcos da literatura moderna. Em seus primeiros livros, Drummond transgredia os padrões clássicos, e tinha como traços marcantes a ironia e a individualidade, além do novo formato da escrita, menos formal, com o verso livre – característicos dessa primeira fase do Modernismo. Em seus textos, ele ironizava ao escrever sobre a sociedade da época e até mesmo sobre sua própria existência. Em “Confidencia do Itabirano”, que destaco: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede” – ele escrevia sobre suas lembranças com tom cético e melancólico, e o amor também recebia um tom irônico inicialmente – mas nunca negava tamanho deste sentimento. Amor como sentimento maior, “negar o amor é negar a própria vida” dizia ele.
                Como redator, Drummond passou pelos mais importantes jornais de Minas Gerais, e além de poesias, ele também publicava crônicas nesses jornais. Trabalhou no Ministério da Saúde e Educação e ajudou a fundar o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em pleno período da ditadura militar, ele se aliou a intelectuais esquerdistas e passou a ser editor da “Imprensa Popular” (jornal comunista de Prestes). Ao mesmo tempo em que via a Segunda Guerra explodir no mundo, entre o paradoxo das ideologias comunistas e da repressão militar ele começou a se desiludir com esse negócio todo de nazismo, fascismo, comunismo e se desencantou com partido comunista. Logo ele se afastou e também se distanciou de temáticas políticas, “Os acontecimentos me entediam.” (epígrafe de seu livro “Claro Enigma”). Nessa segunda fase do modernismo no Brasil, os textos de Drummond se demonstravam cada vez mais amadurecidos, com a fusão do modelo livre e clássico e uma linguagem com diferentes ritmos. Obras como “Sentimento do Mundo” e “Rosas do Povo”, entre outras, com temática social resultada da visão da dura realidade da época, e funcionaram como denuncias da opressão que marcou o período militar. Sua consciência do momento histórico em que vivia produzia uma indagação filosófica sobre o sentimento da vida, e pra essa pergunta ele só encontrava respostas pessimistas, como na poesia “os ombros suportam o mundo” em que ele escreve: “chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus”. Assim, o passado ressurge de forma mais afetuosa em suas poesias, como antítese para a realidade que ele estava vivendo, e então em 1968, ele publicou “Boitempo & A Falta que Ama”, colocando Itabira como lembrança de sua memória afetiva.
                Algumas de suas obras foram traduzidas em diversas línguas, e Drummond também traduziu obras de grandes autores como Molière e Garcia Lorca. E ganhou muitos prêmios no decorrer de sua carreira. Aos 80 anos, ele foi homenageado pela cidade do Rio de Janeiro com exposição comemorativa de suas obras na Biblioteca Nacional e Fundação casa Rui Barbosa, e no carnaval do ano seguinte a Estação Primeira de Mangueira também o homenageou com o samba enredo “No Reino das Palavras”. E mesmo depois de tanto tempo de carreira ele nunca parava de escrever, as obras como os livros “Novas Reunião” (poesias) e “Firewall” foram os últimos livro organizado pelo poeta. “Sou um sobrevivente”, dizia ele. E parecia que tentava fazer o que melhor sabia, até o ultimo fio de sua vida, o ultimo poema que ele escreveu (pouco antes de morrer) foi “Elegia a um tucano morto”. No ultimo ano de vida, depois de sofrer um infarto, ele viu sua filha Julieta morrer vítima de câncer, o que o fez perder o sentido de estar nesse mundo ainda, e doze dias depois da morte de sua filha, ele vem a falecer de problemas cardíacos. Ele deixou obras inéditas como “O avesso das coisas” (aforismo), “Moça deitada na grama” e “Amor Natural” (poemas eróticos que ele manteve em sigilo) – há boatos não confirmados de que esses poemas eram referentes a um caso extraconjugal que ele teve. “E assim vai-se indo a família Drummond” – comentário do poeta. E mesmo nos anos seguintes a sua morte – e até hoje – ele ainda é lembrado e homenageado por entidades como a que criou este projeto. Ou seja, Carlos Drummond de Andrade se imortalizou na história e na literatura brasileira como um dos maiores poetas de todos os tempos.
                Enfim, como ícone de do movimento Modernista no Brasil, e como grande poeta que é, Drummond está imortalizado nos ditos populares, como em “e agora, José?” e “no meio do caminho tinha uma pedra...”. Ele literalmente viveu para contar o que testemunhou de suas experiências humanas e as transformações políticas e sociais que o país enfrentou, e com esse o dom poético que nele se revelava desde cedo, ele criou obras que marcaram a literatura brasileira, transgrediu regras, e mostrou que poesia pode ser feita de diversas formas. Denunciou a injustiça e se desencantou com a “justiça comunista”, viveu, amou, e o tempo todo escreveu, até seu último momento de vida, e mesmo ao escrever que “o que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida” – em sua crônica “Hoje não escrevo” – ele nunca pôde negar sua vocação de poeta e escritor. Assim também como nunca negou o amor pelo que sempre fez. E estudar sobre a vida e a obra de Drummond me ensinou que não importa o que somos, ou como vivemos... O mais importante é sim QUEM somos, e o que fazemos por isso. Escrever sobre Drummond é muito mais do que o ato de estudar, é adquirir mais conhecimento sobre a história e a literatura do Brasil, o que nos faz entender um pouco esse presente em que vivemos.