VOCÊ ESQUECEU, PACHECO
Um pouco por pressentimento, um pouco pela lembrança dos fins de semana arruinados pelo decrépto carro familiar, e definitivamente por não confiar na memória do marido, 15 dias antes do feriado da Páscoa dona Marocas já começou a advertir:
– Pacheco, você precisa levar a Brasília para a revisão. Não vá esquecer, Pacheco. Pelo amor de deus Pacheco.
Pacheco fazia que sim com a cabeça. Depois pressionado pela mulher, resmungava sim, sim. Finalmente encurralado no canto da sala gritava que sim, sim, sim. Iria ao mecânico. Ela podia ficar sossegada. À noite a mulher cobrava e Pacheco respondia:
– Não esqueci, Marocas. Não esqueci. Só não tive tempo, hoje. Mas amanhã...
Assim se passaram duas semanas, até que, na véspera da grande descida para o litoral, Pacheco chegou do trabalho e foi logo avisando:
– Não precisa nem perguntar, mulher. Hoje eu fui. Fizeram uma revisão completa. O carro está um rojão.
No dia seguinte, já umas 5 da manhã, a abnegada Brasília esta pronta pra mais uma missão histórica: descer a serra com Pacheco, Marocas e os três rechonchudos meninos, cada um – graças a Deus e aos sanduíches – na faixa dos 70, bem pesados. Ia também a tralha básica – os mantimentos, as roupas, os cobertores, os remédios, o mata-mosquitos, o mata-baratas. Além disso, é claro, havia a tranqueira maldita – nessa definição de Marocas compreendidos a bicicleta do Junior, o skate do Juca e o Patins da Jajá.
Às cinco e um, estritamente dentro do programa, a sonolenta Brasília estremeceu toda ao ser ligada, tentou por duas vezes se fazer de desentendida e chegou a posar de morta antes de se resignar, ainda tremendo de frio, a pegar novamente o longo caminho da praia. O sol não tinha aparecido e a estrada estava deserta. Só Pacheco, Marocas, os três meninos e a corajosa Brasília , que espirrava, tossia, reclamava, mas seguia em frente. Ou pelo menos seguiu até que, depois de uma praga, um murro no painel e alguns palavrões, Pacheco a fez estacionar no acostamento. Antes de destravar a tampa d capô, abrir a porta e sair, ele ouviu:
– Ah não! Outra vez? Você não levou esse carro pra revisão, Pacheco. Você não levou.
Já com o macaco e a chave de roda na mã, ele se defendeu indignado:
– Levei sim, mulher. Levei. O carro não tem nada. Foi só o pneu. Em vez de ficar falando bobagem, é melhor sair daí, senão não vou conseguir suspender isso nunca. Vocês também meninos. Vamos, vamos.
Dez minutos e muita discussão depois, o pneu estava trocado e os Pachecos prontos para seguir viagem, quando do meio do mato apareceram três revolveres apontados para eles. A família não teve tempo de dizer um “a” e já a Brasília estava sumindo no escuro, com os três malandros, a tralha básica e a tranqueira maldita.
Felizmente passou logo por ali um policial rodoviário. Muito gentil, acomodou as cinco vítimas no carro e tomou o rumo do posto. Lá eles poderiam tomar um café quente e esperar pela devolução das Brasília. Porque ele estava avisando pelo rádio as duas viaturas que já tinham entrado em serviço e ia ser questão de minutos. A não ser é claro, que os bandidos se enfiassem por uma das estradinhas ao lado da rodovia. Mal ele disse isso, Pacheco, agitado, berrou:
– Olha lá, seu guarda. Olha lá a Brasília. É ela.
Era mesmo a infeliz. Estava parada no acostamento, com as portas abertas. O policial jogou o farol alto sobre ela e esperou um minuto. Não havia ninguém ali. Desceram todos e foram fazer a vistoria. Era sorte demais: só faltavam os sanduíches de queijo que eles pretendiam comer no caminho.
O guarda achou estranha aquela deserção:
– Não entendo porque os bandidos não continuaram.
Dona Marocas foi assaltada então pela antiga desconfiança:
– Pacheco, você mentiu descaradamente pra mim. Não levou o carro pra revisão, não foi?
– Levei sim, mulher. Levei, eu juro. O carro está ótimo. Só não lembrei de uma coisa.
– O que foi?
– Esqueci de pôr gasolina.
Graças a Deus, Pacheco, graças a Deus.
(DREWNICK, Raul. O Estado de São Paulo – Caderno 2, 15/5/1990)